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Todas as atenções se viraram para os mais pequenos depois de vários países relatarem casos de crianças hospitalizadas em cuidados intensivos devido a uma rara Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica. Conheça esta síndrome, os seus sintomas e a sua relação com o COVID-19.
Crianças e COVID-19: a síndrome multissistémica inflamatória pediátrica
Estudos epidemiológicos confirmam o que já se afigurava uma certeza: as crianças parecem ser menos propensas à infeção por este coronavírus e, quando infetadas, correm menor risco de um desfecho desfavorável.
Dados divulgados em maio, dão conta de que, a nível europeu, as crianças representam uma proporção muito pequena dos casos COVID-19 confirmados em laboratório.
O Sistema Europeu de Vigilância revela que apenas 2,1% de todos casos COVID-19 confirmados pertencem ao grupo etário dos 0 aos 14 anos de idade e um artigo publicado pelo Italian Journal of Pediatrics sobre recém nascidos e crianças até aos 6 meses de idade infetadas em todo o mundo, também conclui que os dados iniciais relatados são tranquilizadores (1).
O European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) afirma mesmo que, atualmente, o risco geral de COVID-19 em crianças nos países da União Europeia e Reino Unido é considerado baixo (2).
Não obstante a idade se apresentar como um parâmetro determinante na infeção por COVID-19, médicos do National Health System (NHS) lançaram um alerta internacional após identificarem um aumento de casos de crianças previamente saudáveis que apresentavam uma síndrome inflamatória grave com sobreposição de características semelhantes aos da Doença de Kawasaki e do síndrome do choque tóxico (3).
O primeiro relato de caso de uma criança com Doença de Kawasaki e COVID-19 foi publicado nos Estados Unidos, a 7 de abril 2020. Esta criança de 6 meses, admitida com febre persistente e sintomas respiratórios mínimos, foi diagnosticada com Doença de Kawasaki e testou positivo para COVID-19.
A partir daí, vários foram os países com surtos de SARS-CoV-2 relataram casos de crianças com uma série de características clínicas de Doença de Kawasaki e outros com diferenças significativas, mais semelhantes a uma apresentação atípica de Doença de Kawasaki, principalmente em idades acima dos 5 anos.
Os casos ocorriam em crianças com testes positivos para infeção atual ou recente (por SARS-CoV-2) ou tinham uma ligação epidemiológica com um caso de COVID-19, o que pressupôs uma possível associação temporal com a infeção.
No entanto, a sua relação era apenas especulativa. No alerta emitido pelo NHS podia ler-se que existia “uma preocupação cada vez maior de que uma síndrome inflamatória relacionada com o SARS-CoV-2 esteja a surgir em crianças no Reino Unido ou que possa haver outro agente infecioso ainda não identificado associado a esses casos”, deixando em aberto a hipótese desta síndrome ter uma outra origem (3).
Entretanto, um artigo publicado no The Lancet sugere “que esse quadro clínico representa um novo fenómeno que afeta crianças previamente assintomáticas com infeção por SARS-CoV-2, manifestando-se como uma síndrome hiperinflamatória com envolvimento de múltiplos órgãos semelhante à síndrome de choque da Doença de Kawasaki. A natureza multifacetada do curso da doença destaca a necessidade de contribuições multiespecializadas (cuidados intensivos, cardiologia, doenças infecciosas, imunologia e reumatologia)” (4).
Sintomas verificados nas crianças
Estas crianças apresentaram febre persistente e sintomas que incluíam:
- Hipotensão
- Envolvimento de múltiplos órgãos (por exemplo, cardíaco, gastrointestinal, renal, hematológico, dermatológico e neurológico)
- Marcadores inflamatórios elevados.
- Os sintomas respiratórios não estavam presentes em todos os casos.
Os dados mais recentes do ECDC dão conta de, aproximadamente, 230 casos suspeitos desta nova Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica nos países da união europeia e Reino Unido em 2020, incluindo duas mortes, uma no Reino Unido e uma em França. Em Portugal, existiu apenas 1 caso registado até à data.
Para conhecer melhor de que forma esta Síndrome se apresenta, importa conhecer algumas evidências científicas sobre a Doença de Kawasaki clássica, quais os sintomas desta nova Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica, e quais as informações clínicas disponíveis sobre a relação entre elas.
A Doença de Kawasaki
A Doença de Kawasaki é uma doença infantil rara. Causa inflamação nas paredes das artérias em todo o corpo, incluindo as artérias que fornecem sangue para o músculo cardíaco (artérias coronárias).
Em 85% dos casos a doença atinge crianças abaixo dos 5 anos de idade e, em 50% abaixo dos dois anos, com discreto predomínio no sexo masculino.
Embora seja a principal causa de doença cardíaca adquirida na infância em países industrializados, a Doença de Kawasaki é uma condição rara. Na Europa, anualmente, é relatada em média em 5 a 15 por 100.000 crianças menores de 5 anos.
A doença pode ocorrer em qualquer raça, mas é prevalente nas crianças asiáticas, com uma incidência que chega a ser 30 vezes superior à europeia.
A Doença de Kawasaki pode causar erupções cutâneas, febre, inflamação dos gânglios linfáticos, coração e articulações. As complicações mais importantes são ao nível cardíaco com a possibilidade de ocorrência de aneurismas das artérias coronárias, infeção do próprio músculo cardíaco ou enfarte agudo do miocárdio.
A Doença de Kawasaki é considerada a principal causa de cardiopatia adquirida e enfarte agudo do miocárdio em idade pediátrica em países como Estados Unidos e Japão. No entanto, estas formas mais graves da doença podem ser evitadas na sua quase totalidade se o diagnóstico for precoce.
O diagnóstico da Doença de Kawasaki é clínico. Não há testes específicos para o seu diagnóstico. Este baseia-se nos sintomas que a criança apresenta: febre prolongada (5 dias ou mais) e pelo menos quatro dos seguintes critérios:
- Conjuntivite bilateral.
- Alterações dos lábios ou da mucosa oral (língua do morango).
- Erupção cutânea (rash).
- Alterações nas mãos ou pés (eritema, edema (inchaço), endurecimento, descamação).
- Edema dos gânglios linfáticos cervicais.
A etiologia da Doença de Kawasaki permanece desconhecida, mas a hipótese inclui infeção por uma variedade de agentes infeciosos comuns (incluindo bactérias, fungos e vírus) que causam uma resposta patológica do sistema imunitário resultando em Doença de Kawasaki em crianças geneticamente predispostas (5, 6).
a Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica
Os sinais e sintomas desta Síndrome são semelhantes a uma apresentação atípica de Doença de Kawasaki e síndrome de choque tóxico.
Todas as crianças apresentavam:
- Febre prolongada
- Dor abdominal e outros sintomas gastrointestinais
- Conjuntivite
- Rash
- Irritabilidade
- Em alguns casos choque (habitualmente de origem cardíaca)
Alguns sintomas respiratórios, como falta de ar, poderiam estar associados, mas habitualmente são decorrentes das situações de choque.
Dos casos estudados, existiam relatos de sintomas de COVID-19 da criança ou de algum familiar. Algumas crianças testaram positivo para SARS-CoV-2, enquanto outras testaram positivo para os seus anticorpos, o que significa que em algum momento, mesmo que assintomáticas, sofreram infeção. Em alguns casos, também foram detetados outros agentes infeciosos, como várias estirpes de outros vírus (2).
COVID-19 e Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica. Que relação?
Um número relativamente pequeno de crianças foram diagnosticadas com Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica quando comparado com o número geral de crianças com confirmação ou suspeita de infecção por SARS-CoV-2.
A associação causal entre infecção por SARS-CoV-2 e a Síndrome multissistémica inflamatória pediátrica não foi ainda comprovada.
Existe a hipótese de que possa ocorrer como uma reação tardia à infeção por SARS-CoV-2, provavelmente de origem imunológica mediada por anticorpos. Um dos argumentos a favor de ser uma síndrome pós-infeciosa é o facto das crianças afetadas testarem negativo para COVID-19 no momento do diagnóstico, mas com presença de anticorpos IgG positivos. Existem algumas similaridades com a Doença de Kawasaki, mas com diferenças nos critérios laboratoriais.
A comunidade científica continuará a estudar esta Síndrome e a tentar estabelecer ligações epidemiológicas válidas. Até lá, resta-nos manter as medidas de prevenção gerais e manter a atenção para qualquer sinal ou sintoma de doença nos mais pequenos.
- Rose et al. Italian Journal of Pediatrics, Novel Coronavirus disease (COVID-19) in newborns and infants: what we know so far, 29 Abril 2020 consultado em https://doi.org/10.1186/s13052-020-0820-x
- European Centre for Disease Prevention and Control. Rapid risk assessment: Paediatric inflammatory multisystem syndrome and SARS -CoV-2 infection in children. Disponível em: https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/paediatric-inflammatory-multisystem-syndrome-and-sars-cov-2-rapid-risk-assessment
- PICSUK on Twitter. Disponível em: https://twitter.com/PICSociety/status/1254508725227982848?s=20
- The Lancet. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2931094-1
- Sociedade de Pediatria de São Paulo. SÍNDROME INFLAMATÓRIA MULTISSISTÊMICA PEDIÁTRICA (SÍNDROME ASSOCIADA TEMPORALMENTE AO COVID-19). Disponível em: https://www.spsp.org.br/2020/05/19/sindrome-inflamatoria-multissistemica-pediatrica/
- NHS. Symptoms-Kawasaki disease. Disponível em: www.nhs.uk/conditions/kawasaki-disease/symptoms/