Share the post "Quais os princípios para uma relação saudável com a comida?"
Talvez nunca se tenha falado tanto em saúde e bem-estar e, em particular, na relação saudável com a comida. Não há dia em que não saia um artigo, mais ou menos fiável, a propósito dos benefícios ou malefícios de determinado alimento, e o que hoje é verdade amanhã pode bem deixar de o ser.
Multiplicam-se as dietas para isto e para aquilo ou anti-isto e aquilo, quase sempre pouco aconselhadas pela maioria dos nutricionistas, que tantas vezes veem o seu conhecimento posto em causa por uma qualquer receita milagrosa defendida por celebridades, bloggers ou influencers.
Existe um excesso de informação, que contrasta com uma falta de conhecimento, que nos baralha relativamente ao que podemos ou não comer.
Os fatores psicológicos associados à alimentação
Nunca tivemos tanta oferta de bens alimentícios, mas em vez de comerem melhor, as pessoas parecem comer pior, mesmo quando acham que comem bem. Mas falemos de alguns fatores psicológicos associados à alimentação.
O espectro do comportamento alimentar
O comportamento alimentar é um espectro que vai de uma boa relação com a comida, ou aquilo a que se tem vindo a chamar de alimentação intuitiva, até às perturbações do comportamento alimentar, passando pelo comportamento alimentar perturbado.
Tem-se falado muito de alimentação intuitiva, como se fosse algo de novo, às vezes até encarado de forma errada como mais uma estratégia para perda de peso.
O facto de precisarmos de um nome pomposo para designar aquilo que é suposto ser natural é revelador do terrorismo nutricional e do mal que algumas pessoas fazem a si próprias, muitas vezes impulsionadas pelas tendências da moda, que oscilam entre a demonização de alguns alimentos e a idealização de outros, quase sempre sem fundamentação científica e, pior, com riscos para a saúde.
Relação saudável com a comida
Numa relação saudável com a comida, a alimentação tende a ser consciente e intuitiva, ou seja, com respeito pelos sinais de fome e saciedade, hábitos diversificados e equilibrados, prazer no ato de comer, permitindo-se comer além da conta de forma esporádica, sem regras rígidas, e sem recorrer à comida para regular emoções. De uma forma geral há uma boa relação mente-corpo.
Perturbações do comportamento alimentar
No polo da psicopatologia, ou seja, das perturbações do comportamento alimentar, que abrangem 1 a 3% da população, temos a Anorexia, marcada pela restrição, a Bulimia, que habitualmente oscila entre a restrição e a compulsão, e que utiliza mecanismos de compensação, e a Perturbação de Ingestão Alimentar Compulsiva, marcada pela ingestão exagerada e descontrolada de comida num curto espaço de tempo.
Existem outros quadros, que saem um pouco do âmbito deste artigo, para além da Ortorexia, que embora ainda não seja reconhecida como um distúrbio alimentar, é considerada uma alteração clinicamente significativa e de risco, na medida em que a obsessão pela alimentação saudável tende a causar uma grave desnutrição e a ter um forte impacto no quotidiano da pessoa.
Comportamento alimentar perturbado
Entre estes dois polos existe uma faixa muito larga de condições, habitualmente designada por comportamento alimentar perturbado ou “comer perturbado”, que embora não reúnam critérios clínicos de intensidade, duração e frequência para que sejam consideradas perturbações em si, atingem 50% da população e não deixam de ser alarmantes e de constituir risco, na medida em que envolvem grande sofrimento emocional e uma relação com a comida pouco saudável.
Aqui encontramos a restrição excessiva para controlo de peso ou, pelo contrário, comer excessiva ou exageradamente, marcada rigidez e inflexibilidade alimentar, desrespeito pelos sinais de fome e saciedade, mentalidade de dieta (de emagrecimento), foco excessivo nas calorias, funcionamento “tudo ou nada” ou “perdido por cem, perdido por mil”, comer para regular as emoções, culpa ou vergonha ligadas à comida, jejuns prolongados, recurso ao vómito e a laxantes para tentar compensar as calorias ingeridas, utilização de anabolizantes.
O impacto das redes sociais, dos ideais de beleza e das dietas de emagrecimento
A era da imagem, o culto do corpo e a indústria da beleza e do bem-estar, que preconizam a magreza e ausência de imperfeições como ideal, colocam uma grande pressão, que é sentida de forma mais significativa a partir da adolescência, mas que se arrasta ao longo da vida. Basta abrirmos as redes sociais e olharmos para as capas de revistas para vermos o que vende.
Para muitas pessoas, com uma autoestima mais baixa e imagem corporal negativa, a confrontação com estas imagens comporta um enorme sofrimento, pela comparação e escrutínio do mais ínfimo pormenor, que é depois perseguido de forma obsessiva, mesmo que inalcançável pela incompatibilidade com a morfologia, o metabolismo e o estilo de vida individuais.
A grande maioria dos distúrbios alimentares tem início numa dieta restritiva, ou seja, com défice calórico exagerado e exclusão de certos alimentos.
Na maior parte das vezes, a restrição gera compulsão, que por sua vez provoca angústia, culpa e arrependimento, que podem potenciar ainda mais os episódios compulsivos como forma de regular estas emoções, o que dificulta a perda de peso pretendida e, por isso, leva a mecanismos de compensação e novo ciclo de restrição.
É um ciclo que nunca acaba, pois sabe-se que 95% das pessoas falham na adesão à dieta restritiva. Na verdade, não são as pessoas que falham, a restrição é que não é sustentável a nível fisiológico, nem psicológico, mas a indústria convence as pessoas de que o fracasso é seu e a seguir impinge mais uma dieta, um suplemento ou um detox.
Vende muito mais o slogan “tenha o corpo que sempre quis em 4 semanas” do que “aprenda a comer e tenha um estilo de vida saudável” ou “invista na sua valorização pessoal para que esta não dependa apenas do corpo”.
O impacto da autoestima no comportamento alimentar
Mas, apesar do marketing da beleza ser altamente agressivo, ceder ou não a esta pressão está fortemente dependente da vulnerabilidade de base da pessoa.
É por isso que, mesmo nos distúrbios alimentares potenciados pela preocupação com o peso, o problema não é a relação com a comida, mas sim a relação consigo próprio e com os outros.
A dificuldade em perceber esta questão tem feito com que muitas pessoas vivam em sofrimento com dietas atrás de dietas e acompanhamentos psicológicos focados no peso e no corpo, sem nunca irem ao fundo da questão.
Para um grande número de pessoas a comida é uma distração, que desvia o foco do principal: uma angústia profunda e uma enorme dificuldade em aceder aos afetos e em regular as emoções.
Há uma espécie de analfabetismo emocional, que causa um erro de tradução entre a razão, a sensação e a emoção.
Neste sentindo, a comida surge muitas vezes como estratégia para anestesiar emoções desconfortáveis e evitar conflitos ou, pelo contrário, como forma de afirmar uma posição.
Nestas problemáticas, há tanto de fragilidade como de agressividade e uma enorme dificuldade em lidar com estes dois polos afetivos. E a comida está lá sempre, não rejeita, não critica, não retalia.
É importante salientar que existe sempre um enorme sofrimento emocional em torno das alterações do comportamento alimentar, que não se tratam com compaixão, nem com confrontação.
Ou seja, não basta apregoar a autoaceitação ou a força de vontade. Muitas das pessoas que se debatem com estas problemáticas sabem o que devem fazer, mas não o conseguem pôr em prática; há uma ausência de discernimento e racionalidade na forma como se relacionam com a alimentação, o que faz com que dicas generalistas sejam quase sempre malsucedidas.
Uns procuram o conforto e o colo na comida, outros descarregam nela a raiva e as frustrações. É muito mais do que “gulodice ou mania das dietas”. São distúrbios psicológicos que requerem psicoterapia, acompanhamento nutricional e médico, na medida em que existem consequências fisiológicas sérias e, em alguns casos, risco de vida.
O que é a alimentação intuitiva?
Comer intuitivamente é suposto ser algo tão natural como respirar, mas tal parece ter sido subvertido pela cultura das dietas.
Em 1995, Evelyn Tribole e Elyse Rech lançaram o livro “Alimentação Intuitiva”, defendendo uma abordagem nutricional antidietas, sensibilizando para as consequências negativas do terrorismo nutricional e das dietas, que fizeram com que as pessoas deixassem de ouvir o seu corpo. Infelizmente, contrariando a ideia subjacente, aparece por vezes associada a uma estratégia de perda de peso.
A alimentação intuitiva não é uma dieta, mas sim uma filosofia assente em 10 princípios que visam resgatar uma relação saudável com a comida.
Dado que implicam um reconhecimento dos sinais de saciedade e fome, que se encontram alterados e deturpados nas perturbações do comportamento alimentar, é necessária prudência no recurso a esta abordagem nesses casos.
10 princípios para uma relação saudável com a comida
- Rejeitar a mentalidade de dieta.
- Honrar a fome, nutrindo o corpo de forma equilibrada.
- Fazer as pazes com a comida, deixando-se de proibições.
- Desafiar o “polícia” interior, silenciando pensamentos que demonizam certos alimentos.
- Sentir a saciedade, comendo de forma consciente e atentando aos sinais de que está confortavelmente saciado.
- Descobrir o fator da satisfação, comendo o que dá prazer.
- Lidar com as suas emoções, sendo capaz de identificar e respeitar os sentimentos e reconhecendo que a comida não irá aliviar o desconforto emocional.
- Respeitar o corpo, tendo uma visão realista da sua morfologia e não ambicionando um ideal inalcançável, e promovendo uma maior autoaceitação.
- Mover-se de forma saudável, prazerosa e energizante, em vez de procurar exercitar-se de forma exagera para compensar o que comeu.
- Honrar a sua saúde, sem perseguir a perfeição.