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As perturbações do comportamento alimentar tornam-se mais evidentes em períodos em que as pessoas estão mais vulneráveis. Com a incerteza do que estamos a lidar a nível global e o isolamento social imposto como forma de evitar a propagação do novo coronavírus, o perigo de algumas pessoas se voltarem para estes mecanismos de compensação como forma de lidar com a “nova normalidade” é cada vez maior.
Compreender as Perturbações do comportamento alimentar
Em 2017 estimava-se que cerca de 70 milhões de pessoas eram afetadas por perturbações do comportamento alimentar (1). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é o sistema de classificação mais utilizado pelos profissionais de saúde mental e divide as perturbações da alimentação e da ingestão em:
Pica
Ingestão persistente de substâncias não nutritivas, não alimentares, inapropriada ao nível de desenvolvimento do indivíduo.
Mericismo (perturbação de ruminação)
Regurgitação repetida de alimentos, que podem ser novamente mastigados, engolidos ou cuspidos.
Perturbação de Ingestão Alimentar Evitante/Restritiva
Alteração da ingestão ou alimentação (por exemplo, aparente falta de interesse em se alimentar ou na comida ou preocupação sobre consequências aversivas da alimentação) manifestada por incapacidade persistente em atingir as necessidades nutricionais e/ou energéticas associada a perda de peso significativa, deficiência nutricional significativa e/ou dependência de alimentação entérica ou de suplementos nutricionais orais.
Anorexia nervosa
Restrição do consumo de energia relativamente às necessidades, conduzindo a um peso significativamente baixo para a idade, sexo, trajetória de desenvolvimento e saúde física.
Medo intenso de ganhar peso ou engordar ou comportamentos persistentes que interferem com o ganho de peso. Perturbação da própria apreciação do peso ou forma corporal, influência indevida do peso ou da forma corporal na autoavaliação, ou ausência de reconhecimento persistente da gravidade do baixo peso atual.
Bulimia nervosa
Episódios recorrentes de ingestão alimentar compulsiva. Estes episódios caracterizam-se por comer, num período curto de tempo, uma quantidade de alimentos que é, sem dúvida, superior à que a maioria das pessoas comeria no mesmo período de tempo e nas mesmas circunstâncias.
Sensação de perda de controlo sobre o ato de comer e comportamentos compensatórios inapropriados recorrentes para impedir o ganho ponderal, tal como indução de vómito, mau uso de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos, jejum ou exercícios físico excessivo.
Perturbação da Ingestão Alimentar Compulsiva
Episódios recorrentes de ingestão alimentar compulsiva (comer, num período curto de tempo, uma quantidade de alimentos que é, sem dúvida, superior à que a maioria das pessoas comeria), com sensação de perda de controlo sobre o ato de comer.
Podem também estar presentes: ingestão muito mais rápida que o habitual; comer até se sentir desagradavelmente cheio; ingestão de grandes quantidades de comida apesar de não sentir fome; comer sozinho por se sentir envergonhado pela sua voracidade; sentir-se desgostoso consigo próprio, deprimido ou com grande culpabilidade (2).
As perturbações do comportamento alimentar têm um impacto negativo na saúde física, cujos efeitos negativos abrangem os sistemas cardiovascular, gastrointestinal e endócrino, e na saúde mental.
Embora estes distúrbios possam afetar pessoas de todas as idades, adolescentes e jovens adultos são particularmente suscetíveis.
O pico de incidência de doenças como anorexia e bulimia nervosa é entre a adolescência até aos vinte e poucos anos, com uma preponderância superior em raparigas e mulheres. Preocupante é também o facto de apenas cerca de 20% das pessoas com perturbações do comportamento alimentar procurarem tratamento especializado (3).
Perturbações do comportamento alimentar em tempos de isolamento
O surto do novo coronavírus e as políticas de distanciamento social/confinamento colocam as pessoas que sofrem e/ou recuperam de perturbações do comportamento alimentar numa posição bastante delicada.
Em tempos de incerteza como os que vivemos, as perturbações do comportamento alimentar instalam-se na forma de uma falsa sensação de controlo. Para aqueles que sofrem destes distúrbios, comportamentos como comer menos, purgar ou comer compulsivamente conferem uma sensação de controlo ou recompensa momentânea, seguida de sentimentos de culpa (4, 5).
Assim sendo, pessoas que com perturbações do comportamento alimentar têm um alto risco de recidivar ou piorar a gravidade do seu distúrbio, devido ao medo da infeção, ao efeito do confinamento e à escassez de tratamentos psicológicos e psiquiátricos disponíveis no momento (6).
A situação de confinamento/isolamento social pode contribuir para a manutenção e agravamento das perturbações do comportamento alimentar através de vários mecanismos, nomeadamente:
- A possibilidade limitada de caminhar e se exercitar pode aumentar o medo de ganho de peso, acentuando a restrição alimentar.
- A exposição constante a maiores quantidades de comida em casa pode ser um gatilho para episódios de compulsão alimentar.
- A interação social pode ajudar a reduzir a supervalorização da forma corporal, do peso e o seu controle. Ficar em casa pode contribuir para uma situação de grande isolamento, provocando o efeito oposto.
- A situação de isolamento contribui para a manutenção do evitamento de situações como a alimentação social e a exposição do corpo.
- Para quem partilha habitação com outras pessoas, o aumento do tempo conjunto pode provocar maiores conflitos e tensões que, por sua vez, podem contribuir para o acentuar das perturbações do comportamento alimentar (6).
Quais as soluções disponíveis?
Todos atravessamos este período difícil, mas aqueles que padecem de perturbações do comportamento alimentar enfrentam desafios adicionais.
Infelizmente, não existem soluções fáceis para o acentuar destas perturbações em tempo de isolamento. No entanto, tem sido feito o esforço de disponibilizar acompanhamento online, por parte de vários profissionais e entidades de saúde (6).
De forma a minimizar o impacto do confinamento, importa que as pessoas que sofrem destas perturbações tenham em mente que:
1. Sentir ansiedade é normal
Em geral, quando as rotinas são abruptamente interrompidas, o stress aumenta, os padrões de sono são alterados e o isolamento social é maior. Aliado a isto está o facto de várias pessoas partilharem o seu medo em ganhar peso durante o confinamento (3).
Mais ainda, a constante sobrecarga de notícias a que somos expostos acerca do novo coronavírus pode, por si só, aumentar os níveis de tensão e ansiedade.
É importante que as pessoas consigam estabelecer limites e barreiras com os meios de comunicação social e com as redes sociais, de forma a que esta ansiedade não sirva de gatilho para o agravamento das perturbações do comportamento alimentar.
2. Manter o contacto é fundamental
Manter o contacto com quem habitualmente partilhamos os nossos medos e frustrações, sejam eles familiares, amigos ou profissionais de saúde, é extremamente importantes.
Os avanços tecnológicos oferecem proximidade, os profissionais continuam a exercer as suas funções remotamente e, quando a vontade existe, é possível manter o contacto. Procure o seu nutricionista, psicólogo ou psiquiatra nas redes sociais, exponha os seus medos e receba o apoio que precisa nesta altura.
Não é altura para perfecionismos
O confinamento pode servir de pretexto para pensar em comida ou planear as refeições de forma mais agressiva. A estruturação do dia alimentar, nesta situação, é uma forma de garantir uma falsa sensação de controlo.
Como alternativa, tire um tempo no seu dia para focar em algo que o faça sentir bem consigo mesmo e aceite que nem todas as refeições vão ser perfeitamente equilibradas. Muitas vezes, os lanches vão ser o que encontra no armário e isso é normal.
4. Este momento não vai durar para sempre
O desafio de ficar em casa é maior para quem sofre de algum tipo de distúrbio do comportamento alimentar, cujos sintomas são exacerbados pelo isolamento social e pela constante exposição às redes sociais.
É impossível dizer quando irá ser ultrapassado o surto do novo coronavírus, mas o distanciamento social será tão curto quanto melhor cumpridas forem as recomendações da Direção-Geral da Saúde.
- Ekern, J. (2019). Eating Disorders on the Rise All Around the World: An Overview. Disponível em: https://www.eatingdisorderhope.com/blog/eating-disorders-world-overview
- APA (2014). DSM 5. Manual de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais, 5ª Edição. Lisboa: Climepsi Editores.The Lancet. (2020). Eating disorders: innovation and progress urgently needed. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930573-0
- Sung, M. (2020). Joking about Weight During Social Distancing isn’t Helpful for Eating Disorder Recovery. Disponível em: http://mashable.com/article/social-distancing-jokes-eating-disorder-recovery/
- Malacoff, J. (2020). For Many People with Eating Disorders, Quarantine Is an Unexpected Trigger. Disponível em: http://www.instyle.com/beauty/health-fitness/coronavirus-eating-disorders
- Grave, R. (2020.) Coronavirus Disease 2019 and Eating Disorders. Psychology Today. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/us/blog/eating-disorders-the-facts/202003/coronavirus-disease-2019-and-eating-disorders