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O impacto da malnutrição no doente crítico está bem documentado e associado a maiores tempos de estadia nas unidades de cuidados intensivos (UCI) e maiores taxas de mortalidade (1).
Por sua vez, cada vez mais estudos mostram que a agressividade da infeção por COVID-19 é mais evidente em doentes mais velhos, desnutridos e com doenças associadas (2).
Idades mais avançadas e a presença de doenças associadas (hipertensão, diabetes) são fatores que estão invariavelmente associados a uma deterioração do estado nutricional e sarcopenia – perda de massa muscular associada à idade -, independentemente do Índice de Massa Corporal (IMC) (3).
Do ponto de vista bioquímico, marcadores do estado nutricional como a contagem de glóbulos brancos e os níveis de pré-albumina estão associados a um pior prognóstico da doença (2, 4).
Malnutrição no doente crítico por COVID-19: recomendações para o doente internado
A Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo (ESPEN) publicou recentemente algumas linhas orientadoras para a gestão nutricional do doente COVID-19, que incluem as recomendações para o doente internado nas UCI.
Estas recomendações enfatizam a importância de uma intervenção precoce, uma vez que grande parte dos doentes progride de um quadro de tosse para dispneia (falta de ar) e falência respiratória, com necessidade de suporte ventilatório (2, 5).
Informações relativas ao suporte nutricional pela via entérica (por sonda), o uso de medicação que permita um esvaziamento gástrico mais rápido e, quando a alimentação pela via entérica é impossível, o uso de suporte nutricional pela via parentérica, ou seja, recorrendo aos vasos sanguíneos são também contempladas.
No entanto, embora as recomendações forneçam informação quanto à forma mais eficaz de nutrir o doente COVID-19, os efeitos da infeção no trato gastrointestinal e a sedação dos doentes, associado ao facto de muitas vezes ser impossível atingir as necessidades energéticas contribuem para uma deterioração do estado nutricional destes doentes.
Em primeiro lugar, temos que considerar vários fatores que promovem a deterioração do estado nutricional e que estão muitas vezes presentes nestes doentes, mesmo antes de serem internados.
Entre eles está a incapacidade em atingir as necessidades energéticas, muitas vezes presente mesmo antes do internamento, que pode estar associada ao marcado grau de inflamação, que se traduz no aumento consumo de proteínas e massa muscular, e/ou à diminuição da ingestão alimentar.
Outros como diarreias e vómitos podem ser complicações não só da doença, mas também do suporte nutricional que deve ser reajustado de forma a minimizar as perdas de nutrientes (5).
Em segundo lugar e muito embora o suporte nutricional entérico tenha sindo considerado exequível e seguro em doentes ventilados na posição pronada (barriga para baixo), é muitas vezes difícil de implementar no dia-a-dia (6).
O risco de aspiração acidental de conteúdo gástrico e a diminuição do trânsito intestinal são realidades que comprometem a progressão da terapêutica nutricional e são decisivos na gravidade da doença.
Quase metade dos doentes críticos desenvolve sintomas gastrointestinais
Embora o doente crítico com COVID-19 esteja muitas vezes medicado no sentido de contrariar a diminuição marcada do trânsito intestinal, a necessidade de recorrer a analgésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares numa UCI é uma realidade.
Alguns destes agentes, designados curarizantes, têm uma ação neurorelaxadora em toda a musculatura esquelética e, como tal, existe o risco de paresia gástrica e intestinal, o que se traduz numa intolerância á alimentação pela via entérica de 24h.
Desta forma, a instituição da terapêutica nutricional deve ser adaptada (e por vezes atrasada), fenómeno que, associado a uma diminuição marcada da absorção de nutrientes pela via intestinal, pode contribuir para piorar o quadro de desnutrição.
Para além disso, estima-se que cerca de 4% dos doentes com dismotilidade intestinal apresenta uma diminuição marcada na perfusão sanguínea no orgão o que pode ser explicado pelas elevadas doses de sedativos e opioides utilizados para facilitar a ventilação mecânica (8, 9).
A malnutrição está presente antes do internamento
As linhas orientadoras da ESPEN aconselham iniciar o suporte nutricional com 70% das necessidades calóricas na primeira semana de internamento na UCI.
No entanto, como referido anteriormente, os doentes COVID-19 com necessidade de cuidados intensivos encontram-se já doentes há dias e até semanas antes do internamento, o que aumenta a probabilidade de quadros de desnutrição na admissão.
Fatores como náuseas, vómitos e diarreias aumentam as perdas de nutrientes; sintomas da doença como anosmia (perda do olfato), ageusia (falta de paladar) e anorexia (falta de apetite) contribuem para uma diminuição da ingestão alimentar e um quadro inflamatório intenso que acelera a perda de massa muscular e peso contribuem para a malnutrição pré-internamento.
A agressividade do suporte nutricional varia com a gravidade da doença
Dependendo da gravidade do caso, a nutrição entérica deve ser adiada, especialmente na presença de hipoxemia (redução do oxigénio no sangue) e hipercapnia (aumento do dióxido de carbono no sangue) (1).
No caso de hipoxia grave as sondas colocadas no nariz estão contraindicadas, uma vez que impedem a selação entre a máscara de oxigénio e a face do doente, impossibilitando a eficácia do suporte ventilatório a 100%.
Vários estudos mostram que um estado nutricional deteriorado leva a um aumento da patogenicidade do agente (10). Como consequência, o doente COVID-19 crítico pode apresentar défices nutricionais mais marcados, com necessidade de uma terapêutica nutricional mais agressiva, o que muitas vezes não é possível.
A colocação da sonda nasoentérica pode variar conforme o caso
A tolerância à alimentação entérica pode ser avaliada de acordo com o tempo que o conteúdo gástrico demora a sair do estômago para o intestino. Esta avaliação deve ser feita por aspiração do conteúdo gástrico de 4 em 4 horas.
Para além disso, este tipo de doente apresenta dificuldades respiratórias que são aliviadas com a mudança de posição de supino (barriga para cima) para prono (barriga para baixo). Nesta posição, o esvaziamento gástrico pode estar comprometido.
Para doentes com volumes gástricos residuais superiores a 500 ml, em que o risco de aspiração é superior, a ESPEN recomenda a colocação de uma sonda pós-pilórica – com terminação no intestino – o mais precocemente possível (7).
No entanto, este procedimento pode ser problemático neste tipo de doentes.
Em primeiro lugar, a colocação de sondas pós-piloricas necessita de várias tentativas e/ou de confirmação eletromagnética ou por raio-X, o que pode aumentar a exposição do pessoal médico a cargas víricas desnecessárias.
Em segundo lugar, a alimentação pós-pilorica apenas permite a infusão de fórmulas com volumes e osmolaridades muito mais baixas que a fisiológica, sendo a quantidade de calorias diretamente proporcional ao volume fornecido, complicando a progressão do tratamento.
Para além disso, a colocação de sondas pós-piloricas não parece diminuir significativamente o risco de aspiração, podendo inclusive migrar da sua posição durante a mobilização dos doentes (11).
Conclusão
Garantir que o doente crítico com COVID-19 é alimentado de forma correta tem sido um desafio, principalmente devido ao estado nutricional à admissão no serviço e ao impacto que a infeção pode ter no trânsito intestinal.
Para além disso, a intolerância à alimentação por sonda devido à dismotilidade intestinal e a constante necessidade de posicionar o doente em prono podem aumentar o risco de aspiração acidental do conteúdo gástrico, o que pode ser potencialmente catastrófico numa população em que a síndrome de stress respiratório agudo é muito comum.
Por fim, os défices nutricionais na admissão são frequentes, fruto dos sintomas da doença, e podem dificultar ainda mais a gestão nutricional.
Postos estes problemas, carecemos de linhas orientadoras mais focadas para o doente crítico por COVID-19, de forma a minimizar as complicações e aumentar as chances de recuperação e alta das UCI.
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