Nutricionista Hugo Canelas
Nutricionista Hugo Canelas
18 Fev, 2020 - 11:26

Fact-check: leite A2, uma opção mais saudável ao leite tradicional?

Nutricionista Hugo Canelas

O debate acerca dos potenciais benefícios para a saúde do leite A2 continua.

Leite A2: supostos benefícios
fact-check impreciso

Questão em análise

Os estudos indicam que as beta caseínas A1 presentes no leite tradicional podem causar efeitos adversos em determinadas pessoas, independentemente da tolerância à lactose e, por isso, o leite A2 pode ser uma melhor opção.

O leite A2 é uma opção mais saudável ao leite tradicional? Depende. A verdade é que, para além do tipo de proteínas presentes no leite A2, nada o distingue particularmente do leite tradicional ou A1.

Os estudos indicam que as beta caseínas A1 presentes no leite tradicional podem causar efeitos adversos em determinadas pessoas, independentemente da tolerância à lactose.

No entanto, o volume de estudos existentes ainda é bastante baixo para associar o consumo de leite A1 – mais propriamente a presença de BCM-7 – com doenças como o autismo e a síndrome morte súbita em lactentes.

Embora a BCM-7 seja bastante estudada, os efeitos para a saúde ainda estão por determinar

Posto isto, se apresenta sintomas como inchaço abdominal, cãibras e diarreia após o consumo de leite, mas sabe que não é intolerante à lactose, experimentar o leite A2 pode ser uma opção válida.

Os benefícios para a saúde associados ao consumo de leite podem depender da espécie de vaca do qual é obtido. Recentemente, o leite A2 tem vindo a ganhar alguns adeptos, sendo considerado uma escolha mais saudável que o tradicional leite A1.

Entre os benefícios mais estudados está a melhor digestibilidade do leite A2. Mas será mesmo assim?

Neste artigo exploramos de forma objetiva a ciência por trás deste tipo de leite.

O que é o leite A2?

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As caseínas são o grupo de proteínas mais abundante no leite, correspondendo a cerca de 80% do teor proteico normal do produto.

Existem vários tipos de caseína no leite, sendo a beta-caseína a segunda forma mais abundante e havendo, pelo menos, 13 formas distintas (1).

As duas formais mais comuns são:

  1. A1 beta-caseínas, geralmente mais presentes em leite de vacas originarias do Norte da Europa, que incluem as espécies Holstein, Friesian, Ayrshire e British Shorthorn.
  2. A2 beta-caseínas, maioritariamente presentes em espécies originarias das Ilhas do Canal ou Ilhas Anglo-Normandas, e do Sul de França. Estas incluem as espécies Guernsey, Jersey, Charolais e Limousin (1).

O leite tradicional contém tanto beta-caseínas A1 e A2, mas o leite A2 apresenta apenas o último tipo de caseínas.

Alguns estudos referem que as beta-caseínas A1 podem apresentar alguns riscos para a saúde e que as A2 são uma escolha mais segura, havendo algum debate científico acerca dos dois tipos de leite.

Supostos malefícios do leite A1

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A beta-casomorfina-7 (BCM-7) é um péptido opióide libertado durante a digestão da beta-caseina A1 (2, 3).

Alguns estudos apontam para a relação entre este péptido e algumas doenças como as doenças coronárias, autismo, morte súbita infantil e síndrome de intolerância ao leite não relacionada com a lactose. Neste ultimo caso, os efeitos apontados às BCM-7 prendem-se com aspetos da motilidade gastrointestinal (4567).

No entanto, o grau de absorção de BCM-7 intacta ainda é incerto já que embora não tenha sido detetada no sangue de adultos saudáveis, alguns testes indicam a sua presença em bebés (678).

Doenças coronárias

Dois estudos observacionais – que apenas detetam um aumento ou diminuição do risco associado ao consumo de determinado alimento – indicam que o consumo de leite A1 pode estar associado a um risco aumentado de doenças coronárias (59).

No entanto, até ao momento, apenas 2 ensaios clínicos investigaram os efeitos do leite A1 nos fatores de risco de doença cardiovascular em humanos (1011) sendo que em nenhum deles se observou diferenças significativas no impacto dos leites A1 e A2 na função vascular, pressão e lípidos sanguíneos e marcadores inflamatórios.

Síndrome da morte súbita do lactente

A síndrome de morte súbita do lactente (SMSL) é a causa mais comum de mortalidade em crianças com menos de 1 ano (12). Alguns autores implicam a BCM-7 em alguns casos de SMSL (13).

Um estudo detetou concentrações plasmáticas elevadas de BCM-7 em crianças com apneia de sono (6).

No entanto, estes estudos apenas indicam que algumas crianças podem ser mais sensíveis às beta-caseinas A1 do leite de vaca e não que o leite A2 é mais seguro para consumo. É necessária mais pesquisa para confirmar tais dados.

Autismo

O autismo é uma perturbação do desenvolvimento que habitualmente se inicia nos primeiros três anos de vida, caracterizada por interação social esparsa e comportamentos repetitivos.

Em teoria, os péptidos como a BCM-7 podem ter um papel importante no desenvolvimento desta doença, embora os mecanismo propostos não sejam confirmados pela ciência (141516).

Um estudo realizado em crianças detetou maiores concentrações de BCM-7 naquelas alimentadas com leite de vaca do que em crianças amamentadas com leite materno.

Os níveis de BCM-7 baixaram rapidamente em algumas crianças mas, naquelas em que permaneceram elevados, detetou-se uma associação com uma menor capacidade para planear e realizar atividades simples (7).

Outro estudo indica que o consumo de leite de vaca pode piorar os sintomas comportamentais em crianças com autismo, embora os mesmos resultados não se tenham verificado em outros trabalhos (171819).

Até ao momento, nenhum ensaio clínico em modelos humanos foi realizado no sentido de investigas os efeitos dos leites A1 e A2 em sintomas de autismo.

Problemas gastrointestinais

A intolerância à lactose diz respeito á incapacidade para digerir por completo o açúcar do leite, um dipéptido chamado lactose. Nos humanos, a enzima lactase é a responsável pela quebra da lactose em glicose e galactose, para posterior digestão.

Como resultado, ingerir leite e produtos lácteos como queijo e iogurte vai levar à fermentação da lactose no intestino, o que se manifesta numa diversidade de sintomas que vão desde as cãibras abdominais até á diarreia.

Embora o teor de lactose dos leites A1 e A2 seja sensivelmente o mesmo, algumas pessoas descrevem melhoria de sintomas como o inchaço abdominal após a ingestão do último.

De facto, um estudo indica que outros componentes do leite, para além da lactose, podem causar desconforto gastrointestinal (2021).

Mais concretamente, algumas proteínas do leite podem ser responsáveis pela chamada intolerância ao leite não relacionada com a lactose.

Um estudo realizado em 41 pessoas mostrou que o consumo de leite A1 está associada a menos dureza do material fecal, um indicador de transito intestinal mais acelerado. Outro estudo indicou que o leite A2 produzia menos desconforto gastrointestinal após as refeições (2223).

Fontes

  1. Farrell, H. M., Jimenez-Flores, R., Bleck, G. T., Brown, E. M., Butler, J. E., Creamer, L. K., … Swaisgood, H. E. (2004). Nomenclature of the Proteins of Cows’ Milk—Sixth Revision. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15453478
  2. Boutrou, R., Gaudichon, C., Dupont, D., Jardin, J., Airinei, G., Marsset-Baglieri, A., … Leonil, J. (2013). Sequential release of milk protein–derived bioactive peptides in the jejunum in healthy humans. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23576048
  3. De Noni, I., & Cattaneo, S. (2010). Occurrence of β-casomorphins 5 and 7 in commercial dairy products and in their digests following in vitro simulated gastro-intestinal digestion. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S030881460900867X
  4. Birgisdottir, B. E., Hill, J. P., Thorsson, A. V., & Thorsdottir, I. (2006). Lower Consumption of Cow Milk Protein A1 β-Casein at 2 Years of Age, Rather than Consumption among 11- to 14-Year-Old Adolescents, May Explain the Lower Incidence of Type 1 Diabetes in Iceland than in Scandinavia. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16407643
  5. McLachlan, C. N. S. (2001). β-casein A1, ischaemic heart disease mortality, and other illnesses. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/11425301
  6. Wasilewska, J., Sienkiewicz-Szłapka, E., Kuźbida, E., Jarmołowska, B., Kaczmarski, M., & Kostyra, E. (2011). The exogenous opioid peptides and DPPIV serum activity in infants with apnoea expressed as apparent life threatening events (ALTE). https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21334743
  7. Kost, N. V., Sokolov, О. Y., Kurasova, О. B., Dmitriev, A. D., Tarakanova, J. N., Gabaeva, М. V., … Zozulya, А. A. (2009). β-Casomorphins-7 in infants on different type of feeding and different levels of psychomotor development. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19576256
  8. Teschemacher, H., Umbach, M., Hamel, U., Praetorius, K., Ahnert-Hilger, G., Brantl, V., … Henschen, A. (1986). No evidence for the presence of β-casomorphins in human plasma after ingestion of cows’ milk or milk products. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/3958290
  9. Laugesen, M., Elliott, R. (2003). Ischaemic heart disease, Type 1 diabetes, and cow milk A1 beta-casein. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12601419
  10. Chin-Dusting, J., et.al. (2006). Effect of dietary supplementation with beta-casein A1 or A2 on markers of disease development in individuals at high risk of cardiovascular disease. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16441926
  11. Venn, B. J., Skeaff, C. M., Brown, R., Mann, J. I., & Green, T. J. (2006). A comparison of the effects of A1 and A2 β-casein protein variants on blood cholesterol concentrations in New Zealand adults. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16298373
  12. Beckwith, J. B. (2003). Defining the Sudden Infant Death Syndrome. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12622679
  13. Sun, Z., Zhang, Z., Wang, X., Cade, R., Elmir, Z., & Fregly, M. (2003). Relation of β-casomorphin to apnea in sudden infant death syndrome. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12948848
  14. Reichelt, K. L., & Knivsberg, A.-M. (2003). Can the Pathophysiology of Autism be Explained by the Nature of the Discovered Urine Peptides? https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12608733
  15. Hunter, L.C., et.al. (2003). Opioid peptides and dipeptidyl peptidase in autism. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12578238
  16. Cass, H., Gringras, P., March, J., McKendrick, I., O’Hare, A. E., Owen, L., & Pollin, C. (2008). Absence of urinary opioid peptides in children with autism. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18337276
  17. Lucarelli, S. et.al. (1995). Food allergy and infantile autism. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8869369
  18. Navarro, F., Pearson, D. A., Fatheree, N., Mansour, R., Hashmi, S. S., & Rhoads, J. M. (2014). Are “leaky gut” and behavior associated with gluten and dairy containing diet in children with autism spectrum disorders? https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24564346
  19. Millward, C., Ferriter, M., Calver, S. J., & Connell-Jones, G. G. (2008). Gluten- and casein-free diets for autistic spectrum disorder. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18425890
  20. Pelto, L., Impivaara, O., Salminen, S., Poussa, T., Seppänen, S., & Lilius, E.-M. (1999). Milk hypersensitivity in young adults. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10477248
  21. Johnson, A. O., Semenya, J. G., Buchowski, M. S., Enwonwu, C. O., & Scrimshaw, N. S. (1993). Correlation of lactose maldigestion, lactose intolerance, and milk intolerance. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8438774
  22. Ho, S., Woodford, K., Kukuljan, S., & Pal, S. (2014). Comparative effects of A1 versus A2 beta-casein on gastrointestinal measures: a blinded randomised cross-over pilot study. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24986816
  23. Jianqin, S., Leiming, X., Lu, X., Yelland, G. W., Ni, J., & Clarke, A. J. (2015). Effects of milk containing only A2 beta casein versus milk containing both A1 and A2 beta casein proteins on gastrointestinal physiology, symptoms of discomfort, and cognitive behavior of people with self-reported intolerance to traditional cows’ milk. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27039383
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