A hiperuricemia, ou gota, é o tipo mais comum de artrite inflamatória e é conhecida há milhares de anos (1). A causa desta doença é a deposição de cristais de urato monossódico nas articulações associada a excessos alimentares ou a fatores genéticos.
Do ponto de vista nutricional, as recomendações para a gestão desta doença datam do século XVIII e mantêm-se relativamente inalteradas desde então.
Em 1876 já era recomendada a diminuição da ingestão de alimentos ricos em purinas, como os mariscos (2, 3), e em 1889 preconizava-se a diminuição da ingestão energética, o consumo abundante de água e frutas como morango e cereja bem como a evicção do consumo de bebidas alcoólicas (4).
No entanto, e embora seja amplamente aceite que uma dieta isenta/restrita em purinas seja a principal abordagem nutricional nesta doença, fica por esclarecer se existem alimentos que baixam o ácido úrico.
Neste artigo abordamos este tema, analisando de forma critica a existência de tais alimentos que, para além da sua natureza pobre em purinas, apresentam outro ou outros componentes com capacidade para baixar os níveis de ácido úrico no sangue.
QUAL É O PAPEL DA ALIMENTAÇÃO NESTA DOENÇA?
Alguns alimentos podem despoletar uma crise de gota devido à elevação dos níveis de ácido úrico. Estes alimentos são frequentemente ricos em purinas, substâncias naturalmente presentes, cujo metabolismo resulta em ácido úrico como produto de excreção (5, 6).
Embora não seja preocupante em pessoas saudáveis, em doentes com hiperuricemia há uma incapacidade para excretar corretamente o ácido úrico que se acumula posteriormente nas articulações e precipita sintomas de arterite crónica (7).
Os estudos mostram, contudo, que uma dieta restrita em purinas associada ao tratamento farmacológico pode prevenir as crises de gota (8).
Os alimentos que despoletam as crises, devido ao seu elevado conteúdo em purinas, incluem vísceras de animais, carnes vermelhas, mariscos, bebidas alcoólicas em geral e a cerveja em particular (9, 10).
Curiosamente, a frutose e alimentos açucarados também podem despoletar crises de gota, não porque são ricos em purinas (11), mas porque aceleram vários processos celulares que induzem a produção de ácido úrico (12, 13, 14).
Alguns dos alimentos ricos em purinas encontram-se listados abaixo:
- Miúdos e vísceras, incluindo fígado, rins e cérebro de animais
- Carnes de caça
- Peixes: arenque, truta, cavala, atum, sardinha e anchova entre outros
- Mariscos: vieiras, caranguejo, camarão e ovas
- Bebidas açucaradas, especialmente refrigerantes e sumos de frutas
- Açúcares de adição: mel, agave e xarope de milho rico em frutose
- Leveduras, incluindo a de cerveja e em forma de suplementos.
Para além destes, alimentos ricos em hidratos de carbono refinados como o pão branco, biscoitos e doçarias também devem ser evitados já que, mesmo não sendo ricos em purinas ou frutose, não são nutricionalmente interessantes e podem aumentar os níveis de ácido úrico (15).
ALIMENTOS QUE BAIXAM O ÁCIDO ÚRICO
Embora a base nutricional para a gestão desta doença passe por escolher alimentos pobres em purinas, alguns deles apresentam componentes bioativos que podem inclusive baixar os níveis de ácido úrico.
Existe, no entanto, uma exceção: vegetais ricos em purinas não aparentam despoletar ataques de gota mas o porquê deste fenómeno ainda não está completamente esclarecido (16).
Alimentos que baixam o ácido úrico: cerejas
Está definido que a ingestão de alimentos ricos em vitamina C ajudam a reduzir os ataques de gota (17). No entanto, no caso da cereja, esse não parece ser o caso.
Um estudo elaborado com 10 mulheres mostrou que o consumo de cerejas, mas não outros frutos, reduziu significativamente os níveis de ácido úrico (18). As cerejas são ricas em antocianinas que apresentam um efeito anti-inflamatório através da inibição da enzima cicloxigenase-I.
Embora as cerejas apresentem alguma vitamina C (cerca de 80 mg por porção), é pouco provável que esta quantidade tenha qualquer impacto nas crises de gota, uma vez que as doses relevantes associadas à redução do ácido úrico no sangue são superiores a 500 mg/dia (19).
Alimentos que baixam o ácido úrico: produtos lácteos
As proteínas do leite, caseínas e lactoglobulinas, aparentam ter não só um um efeito uricosúrico, mas parecem baixar de forma isolada os níveis de ácido úrico no sangue.
Um estudo explorou o efeito agudo da suplementação com 80 g de caseína, lactoglobulina e isolado de proteína de soja, tendo-se verificado que o ácido úrico sérico diminui significativamente após ingestão das proteínas do leite, mas que aumenta após o consumo de soja.
Os mecanismos envolvidos neste fenómeno são ainda incertos, mas podem estar associados a uma competição pela absorção de proteína a nível renal ou ao aumento da excreção de ácido úrico na presença de níveis aumentados de ureia plasmática.
Da análise de resultados foi sugerido que os efeitos dos produtos lácteos na eliminação e produção de ácido úrico seja um efeito multifatorial (20).
Alimentos que baixam o ácido úrico: café
Embora frequentemente incluído nas listas de alimentos a não consumir por doentes com gota, o café pode na verdade ser um dos alimentos que diminui o ácido úrico.
A cafeina é considerada uma metilxantina cuja ação pode bloquear a da enzima xantina oxidase, uma das enzimas responsáveis pela conversão das purinas a ácido úrico. Na verdade, este é apenas um dos mecanismos pelos quais o café pode ajudar a baixar o ácido úrico (21).
Para além de diminuir os seus níveis no sangue, o café pode aumentar a taxa de eliminação do ácido úrico, como o que se verifica com as proteuinas do leite. Um artigo de revisão recente indica que o consumo frequente de café baixa os níveis de ácido úrico e diminui o numero de crises (22).
No entanto, este efeito parece ser exclusivo do café, uma vez que num estudo de 2007 o consumo de chá não estava associado à diminuição do ácido úrico (23).
Estes dados parecem implicar que outros compostos presentes no café, para além da cafeina, podem atuar de forma sinérgica para baixar os níveis de ácido úrico no sangue.
Alimentos que baixam o ácido úrico: água
Estudos mostram a o uso de saunas com o intuito de desidratar aumenta as concentrações plasmáticas de ácido úrico e oxipurinas (xantina e hipoxantina) ao mesmo tempo que diminui a sua excreção urinária (24).
Por outro lado, a desidratação associada à prática de exercício físico parece ter efeitos semelhantes (25), colocando em evidência o papel da hidratação na produção de urina e no controlo do ácido úrico no sangue através da sua excreção.
Neste sentido, os doentes com gota são encorajados a ingerir grandes quantidades de fluidos, como sugerido num estudo em que o consumode quase 2 litros de água por dia reduziu o número de crises em 46% (26).
CONCLUSÃO
As recomendações nutricionais para o tratamento da gota são geralmente baseadas em evidência datada e de baixa qualidade. No entanto, as recomendações mais frequentes envolvem a limitação do consumo de alimentos ricos em purinas e a perda de peso, estando ainda por explorar o papel de determinados alimentos nos níveis de ácido úrico.
Estes, por sistema, são alimentos já pobres em purinas, que contêm substâncias que reduzem os níveis de ácido úrico, como a vitamina C, ou que aumentam a produção de urina e assim a excreção desta substância.
Se tem problemas com ácido úrico, pode beneficiar do consumo destes alimentos, aliados à terapêutica instituída pelo seu médico assistente. Consulte um nutricionista credenciado para saber a melhor forma de incluir estes alimentos no seu dia-a-dia.
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